31 de maio de 2011

23 de maio de 2011

texto do Dr. Valério Bexiga de apresentação do livro "Da minha Janela Afora pela Janela de Mim Adentro"

Aqui fica o texto com que, aproximadamente, o Dr. Valério Bexiga apresentou o livro de poesia "Da Minha Janela Afora Pela Janela de Mim Adentro" de Sérgio Matos.

Meus Amigos:

Aí pelo meio da primeira metade do século passado, tiveram participação num processo judicial os dois expoentes da medicina e da advocacia portuguesas: O Professor Egas Moniz e o dr. Ramada Curto, aquele como perito, este como mandatário de parte.
Na prestação de esclarecimentos sobre a perícia, o advogado introduziu uma pergunta de clarificação com a seguinte frase: “Esclareça-me cá, senhor Professor, que eu de medicina percebo pouco …”
A pontos tais o Egas Moniz, empertigado, rompeu com uma intermissão: “De medicina percebe pouco, alto lá?! O senhor de medicina não percebe nada! Quem percebe um pouco de medicina sou eu!”
Esta história dá o mote para introduzir uma outra, da Antiguidade, respeitante a Alexandre Magno e ao seu cavalo, Bucéfalo:
O Alexandre tinha mandado pintar um retrato do cavalo ao mais afamado pintor da sua época: Apeles.
Apresentada a obra, o General não se agradou dela. Seguiu-se uma controvérsia entre os dois e, como meio de tira-teimas, trouxe-se o modelo para comparar com o retrato.
À vista da pintura, o cavalo, ou por aprazimento de ver o dono, ou porque lhe cheirou a égua (que, a seu aprecio, valia mais que o dono) relinchou enfaticamente.
Este relinchado foi tomado, pelo Alexandre e pelo Apeles, como uma manifestação de agrado do cavalo pela visão do seu retrato, o que levou o pintor a observar: “Afinal, o teu cavalo percebe mais de pintura do que tu!”

Fui incumbido de comentar uma obra do poeta que me ladeia e trouxe à colação estas histórias para significar — a fim de não criar falsas expectativas — que eu percebo tanto de poesia como o Ramada Curto percebia de medicina e menos que o cavalo do Alexandre percebia de pintura.
Nesta congeminência, surge a pergunta: “Então, se assim te julgas, por que te afuturaste a falar sobre o que não percebes?
Todos temos momentos de fraqueza na vida e eu tive a noção da pertinência da questão. Acontece que a pessoa amoldada para o desempenho da tarefa, o meu colega e amigo dr. Fernando da Cruz Cabrita, poeta laureado cá dentro e lá fora, apresenta, a esta hora, um livro seu em Vila Real de Santo, razão por que está impedido de “tirar de mim este cálice”.

Fechada a introdução, vamos ao livro. E, no livro, para efeitos de arrumação metodológica, distingo a forma do fundo.

Quanto à forma, o primeiro elogio vai para a versatilidade da linguagem. Cada figurante utiliza o léxico próprio do seu estado, grei, ou profissão: o calão do toxidependente, o linguajar do montanheiro (homem do barrocal) a gíria do marracho (homem do mar), o paleio hiperbólico do bufarinheiro de feira (que dispensa o autor de versejar o político) conferem uma polivalência vocabular à obra que a perpassa de capa a capa.
Mesmo quando não tem de vestir a pele de alguém, o léxico é rico e variado, frequentemente, pouco correntio, e, vez a vez, rebuscado — o que se toma à conta da necessidade de rimar.
A rítmica é formalmente perfeita e o verso obedece aos cânones de métrica e acento.

Quanto ao fundo, há mais a dizer.
E a primeira coisa é que à frente da janela do poeta passa o pequeno e o grande, passa o rico e o pobre, passa o ébrio e o sóbrio. Isto é: passa a gente, a sub-gente e a sobre-gente. Passa o Mundo, passa a Vida.
Poderia dizer-se que é uma janela privilegiada, mas o privilégio não está na janela, está nos olhos que estão por detrás dela.
Olhos que não vêem só as formas, os arquétipos. Divisam, também, os fundos, sondam sentimentos, perscrutam almas.
Como num auto de Gil Vicente, as figuras entram em cena, representam o seu papel, e saem de palco, dando a deixa a outro “actor”. A representação pode ser cómica, ou trágica, mas os personagens são sempre autênticos, sempre verdadeiros, porque a verdade não quer disfarces.

Meus amigos:
Até à chamada terceira idade, o Homem pensa para a frente, procura o futuro; a partir dela, pensa para trás, exalta o passado, embevecido na fanfarronice dos seus êxitos pessoais ou na pretensa desdita da substituição dos antigos costumes e valores morais pelos de um Mundo que já não é o seu.
Perante este quadro, poderão avaliar com que emoção eu vejo passar, sob os meus olhos, o Cuco das Medalhas, o Chico das Martelacas, o Manuel Bigodes dos Sorvetes, o Coelho das Facas, o Pavão da Barbearia, figuras típicas de quando a cidade era, sociologicamente, uma aldeia (onde não havia desconhecidos) e que não foram substituídas, nem o serão, pelo cosmopolitismo que lhe adveio e, agora, a caracteriza.
Mas os figurantes não são, apenas, os individualizados: o poeta aproveita o pano de fundo da feira do Carmo para retratar, não já indivíduos, mas grupos conexionados por características de estado, sexo, idade ou profissão. E, destes, representam função histórico-pedagógica os das profissões, entretanto, extintas: aguadeiro, chapeleiro, canastreiro, leiteira, alfaiate, lavadeira …

Comecei com duas alegorias e termino com uma terceira:
Américo Tomás foi um Chefe de Estado português com patente de Almirante e cultura de Marujo (sem desprimor … para os marujos). O seu pendor (nas intermitências deixadas por caçadas de perdizes e mordomias) ia para festanças e foguetadas. No rescaldo de uma das inúmeras homenagens que lhe renderam, um jornalista pediu-lhe a expressão da sua sensibilidade relativamente à consagração que acabava de lhe ser feita, ao que o Presidente da Ditadura respondeu: “para caracterizar esta homenagem, só tenho um adjectivo — gostei!”
Para caracterizar o meu aprecio em relação ao livro que, ora, se lança, eu invoco o “adjectivo” do Américo Tomás.
Obrigado.

12 de maio de 2011