Entrevista ao S (suplemento de artes do Postal do Algarve), Janeiro 2009
(na foto, atrás do livreiro, um dos primeiros quadros de Manuel Baptista, oferecido em troca de livros...)
Ligado ao MUD juvenil, preso político, membro fundador do Cineclube de Faro, funcionário e depois proprietário da Livraria Silva, a vida de Duarte Infante está intimamente ligada ao movimento cultural e cívico da cidade de Faro.
Numa tarde de Janeiro aproveitamos uma visita à sua excelente biblioteca para recolher o testemunho de uma vida que o próprio considera pouco interessante. Do quotidiano da vida guarda poucas recordações. As respostas são curtas e pautadas por silêncios. É calado para o que foi que se coloca perante si. Há momentos da vida que parecem não lhe ter deixado marca. Queixa-se com frequência da memória, no entanto, quando a conversa se desvia para os livros as lembranças surgem como um prodígio. Não há livro de que não se recorde, do autor, da editora, do responsável pelas ilustrações da capa, dos pormenores que os singularizam.
As suas estantes, distribuídas pelas várias divisões da casa, guardam primeiras edições, livros apreendidos pela Censura, outros raros pela tiragem limitadas que tiveram. Da História à Filosofia, do Romance à Poesia, passando pela Sociologia, pelos estudos políticos ou pela Arqueologia, os seus livros revelam uma latitude de interesses e uma vontade de saber infinita.
Duarte Infante nasceu, no ano de 1927, no seio de uma família da média burguesia. O pai, que hoje se poderia considerar de esquerda, era do Alentejo, de Mértola, e veio para o Algarve como empregado comercial. Casou em Faro e teve dois filhos, o Duarte Infante e um irmão.
O destino de Duarte, ainda que ninguém o pudesse prever, começou-se a desenhar, 5 anos antes de ter nascido, em 1922, quando o seu tio, Eduardo, fundou, em Faro a "Papelaria e Livraria Silva".
No último quartel do século dezanove, o inventário do comércio, na cidade de Faro, apurado por Luís Santos, em «Faro, Um Olhar sobre o Passado Recente», não revela a existência de nenhuma livraria. No entanto aponta a venda de romances portugueses e franceses, artigos de papelaria, e música na tabacaria «A Havaneza» propriedade de Augusto Tavares e do irmão, situada no n.º 23 da Rua do Rego.
O seu tio Eduardo José da Silva, natural de Évora, estabeleceu-se em Faro por intervenção do irmão mais velho, o Sr. Joaquim da Silva Nazareth. Quando cá chegou foi ocupar o edifício onde hoje funciona o Café Aliança. Passados poucos anos o José Pedro da Silva, que tinha comprado o edifício para fazer o café, deu-lhe qualquer importância para ele ir para o sítio onde antigamente tinha porta aberta uma mercearia e hoje funciona a farmácia Caniné. O meu tio foi para aí e até ao fim da "Livraria Silva" ficou sempre nesse sítio. A Livraria, que com o tempo, foi ampliando o seu âmbito, alargou as suas instalações com uma secção de brinquedos e, depois, uma de artigos fotográficos.
«Pela morte de meus tios, a livraria ficou dividida entre mim e a minha prima, Maria de Lurdes, ficamos com a livraria e depois vendemos aquilo ao Capela que ainda esteve ali alguns anos depois acabou com aquilo também. Estive lá a trabalhar com ele dois ou três anos e sai quando me reformei em 1992. Era uma ambição antiga do Capela ficar com a "Livraria Silva", ele que já possuía um estabelecimento congénere antes do meu tio Eduardo chegar a Faro».
O seu tio Eduardo, um republicano convicto, era o mais novo dos dezasseis irmão de, Joaquim da Silva Nazareth, que ajudou a estabelecer dos irmãos por diversas terras do país com estabelecimentos similares. Em Santarém, Beja, Portalegre e Faro.
O pai de Duarte Infante ainda se meteu nos negócios e foi co-proprietário da ainda hoje existente Casa Verde.
«Um amigo emprestou o dinheiro ao meu pai para ele se estabelecer. Mas ele era muito amigo do Fernandes, de quem os actuais donos são herdeiros, e só aceitava se o Fernandes fosse com ele. O outro não gostava do Fernandes mas o meu pai insistiu e lá se estabeleceram os dois. Quando deflagrou a Segunda Guerra eles eram proprietários da loja e de um armazém. E o meu pai ficou com a parte que teve a maior desvalorização, o armazém. Ficou mal e acabou por se ir empregar no Banco Espírito Santo.
Eu estudei na escola comercial. A escola comercial antigamente só chegava ao terceiro ano aqui em Faro. Fiz os três anos e depois sempre tinha pensado em ir para a loja, meti aquilo na cabeça e fui mesmo. E ali fiquei. Não pensei em estudar mais. Eu não tive ambições superiores a isso. O meu irmão fez aqui o sétimo ano e depois, do curso liceal, e mais por motivos económicos, frequentou a Escola do Exército, tendo seguido carreira militar, não sem alguns percalços persecutórios do regime. No 25 de Abril, já na reserva, apresentou-se ao poder revolucionário e teve algum protagonismo no pós-revolução, tendo sido o primeiro embaixador de Portugal na Argélia. Era um homem culto. Foi pai da personagem "Cristina" de "Aparição" de Vergílio Ferreira, de quem era amigo e compadre.
O meu tio não tinha filhos, criou uma sobrinha, a minha prima Maria de Lurdes, e penso que ele também fazia gosto que eu fosse trabalhar para lá. Sempre se pensou que o meu caminho se dirigiria para, num futuro, nessa altura ainda distante, tomar a direcção da livraria.
Tinha o gosto pelos livros porque o meu pai também era uma pessoa que lia muito. Tinha uma biblioteca razoável naquele tempo. Eu estava sempre a ler. Tinha um livro em cada casa que corria. Lia em casa, se ia almoçar à do meu tio tinha lá um livro também. O mesmo acontecia na loja quando havia algum tempo livre. Eu, o meu pai, o meu irmão e mesmo a minha mãe líamos muito. Éramos pessoas dedicadas aos livros».
A biblioteca do pai era composta por obras de Eça de Queiroz, do padre António Vieira, do Camilo Castelo Branco, entre outros e por uma secção bem generosa de livros de história. O seu tio não era dedicado à leitura era sobretudo um homem de negócios. Era respeitado enquanto pessoa séria, cumpridora, muito conceituada na cidade.
Pela livraria passaram, Emiliano da Costa, Lyster Franco, Marques da Silva, Cândido Guerreiro, António Ramos Rosa, Virgílio Ferreira, Gastão Cruz, Casimiro de Brito, Luísa Neto Jorge, entre outras figuras literárias e personalidades interessantes. Do poeta de Alte, veio a lume o “Auto das Rosas de Santa Maria” primeira e única edição de Eduardo João da Silva. A livraria era um espaço de referência na cidade de Faro e por isso lá se juntava muita gente. Duarte Infante recorda que certo dia passaram duas estudantes liceais de bata branca, como era hábito na época. Cândido Guerreiro que coincidia à porta da livraria com António Aleixo, disse: «Aquelas donzelas/
Todas de branco iguais…»
«Oh doutor, uma só delas/ Para nós era demais.» Completou António Aleixo.
Dos poetas recorda a relação comAntónio Ramos Rosa: «A amizade com o António Ramos Rosa foi uma coisa de gerações. Havia uma série de rapaziada daquele tempo de pensamentos e políticas semelhantes que se juntava para conversar e até houve uma altura em que quisemos formar uma biblioteca. Cada um comprava um livro. Já não sei como é que isso ficou. Conversávamos muito, era naquela altura em que havia tertúlias no café, íamos um dia por semana ao cinema. Eu e o Ramos Rosa conhecemo-nos relativamente cedo. O Ramos Rosa era uma pessoa muito recatada, não era muito expansivo. Tinha o seu grupo de amigos e com esses muito bem, o Vargas, o Manuel Madeira, o meu irmão. Percebia-se que ele se interessava muito por poesia e sobretudo por poesia francesa. Ele mantinha relações com muitos poetas franceses dessa altura. Vivia rodeado de livros e lia muito na loja, o meu tio deixava-o entreter-se lá nas leituras. Ele vivia com muitas dificuldades. O pai era sacristão da igreja de São Francisco, a mãe era doméstica».
A partir da candidatura à Presidência da República do General Norton de Matos começou a interessar-se mais profundamente pela política. Foi criando amizades políticas especialmente com pessoas da sua idade e acabou por aderir ao MUD Juvenil e participar activamente nos trabalhos de difusão de panfletos feitos nos inevitáveis "copiógrafos", nas reuniões clandestinas, trabalhos em comissões, e nas fugas à polícia.
«A minha prisão veio da minha participação no MUD, as movimentações com Norton de Matos e depois com o Humberto Delgado. Eles sabiam que eu estava ligado a essas coisas e era natural que estivesse debaixo de olho. Fui preso por ter posto na montra da livraria a revista Seara Nova com a fotografia do Humberto Delgado na capa. Mas eu estive pouco tempo preso e desconfio porquê. A minha cunhada tinha uma irmã que vivia com um homem de negócios importante. E esse homem não era político mas era simpatizante da situação. Era um indivíduo excepcional porque tinha empregados que eram contra o regime e nunca despediu nenhum sabendo disso. Não era faccioso. Ele era bem visto pelo regime e penso que terá sido por influência dele que eles me soltaram mais cedo. Nunca cheguei a essa conclusão mas tenho isso metido na cabeça e desconfio que foi ele mesmo.
Porque eu não cheguei a estar um mês preso no Aljube. Fui chamado. Estive um dia na Polícia de Segurança Pública, que era ali no Arco da Vila. Estive aí até à noite e nessa mesma noite puseram-me no Comboio e fui para o Aljube. E lá fiquei. Estive uns dias incomunicável. Ainda tomei relações com um indivíduo que lá estava preso sem o conhecer nem nunca o ver. Com sinais nas paredes. Era um operário e chamava-se Rato. Nunca cheguei a saber quem ele era. Fui preso por ser contra o regime por ter ligações com o Rosa, com o Vargas e outros tipos subversivos. Não eram precisas grandes justificações».
Sobre os livros proibidos diz que muitas vezes não chegavam a livraria. «Apanhavam-se por portas e travessas. A polícia aqui não era assim muito vigilante. Normalmente quem aparecia não era a polícia política era a PSP. E eles normalmente eram pessoas da terra e havia um certo entendimento, tácito, eles não queriam ser muito antipáticos e então havia sempre umas coisas escondidas.
Muitas vezes não se percebia a razão pela qual certos livros eram proibidos. Os censores não deviam muito à inteligência portanto a proibição não era muito «científica». Havia coisas anedóticas no meio disto tudo. Ao meu amigo Vargas um dia a polícia levou-lhe o retrato de um tio só porque se tinha fotografado de barbas. Hoje dá para rir mas na altura não tinha graça nenhuma.
Naquele tempo o que marcava mais eram os livros neo-realistas, o Alves Redol, o Soeiro Pereira Gomes, Gomes Ferreira, o Manuel da Fonseca.
Ainda no contexto das actividades políticas, ocorreu-lhe fundar, em Faro, um cineclube, para através do cinema também lutar contra o regime. E é disso que dá conta ao seu grande amigo João de Brito Vargas.
«Um dia saio da loja e encontro o meu amigo Vargas. Já andava com aquilo metido na cabeça há algum tempo e sugeri-lhe a fundação de um cineclube a exemplo do que sucedia noutros pontos do país. Ele aceitou a ideia de imediato, tendo sido um dos seus principais impulsionadores. Eu estava muito preso na loja, e ele como tinha mais vagar começou logo a mexer os cordelinhos. A possibilidade de aquilo ir avante era meter gente que não fosse mal vista pelos poderes e então meteu-se o Dr. Cassiano, o Baptista da farmácia, um professor do liceu e umas pessoas assim para dar um aspecto de seriedade às coisas. E então com muitas dificuldades lá se conseguiu. De tal maneira que no dia em que era para ser inaugurado não foi. Lá arranjaram um pretexto, que não me recordo qual foi, para adiarem aquilo para o outro dia, mas conseguiu-se e o Cineclube de Faro funciona ininterruptamente desde 1956, o que sob este aspecto o torna o único do país.
Sobre os novos autores diz não estar tão actualizado como em tempos. A razão está na dificuldade que encontra em ler romances. «Os romances já não me entusiasmam, prefiro ler sobre história ou outra coisa. Antigamente gostava de ler romances policiais. No meio das outras leituras ia lendo principalmente os livros da colecção Vampiro. Já não tenho paciência para isso. Tenho ali uma série deles que não cheguei a ler. Já peguei num ou dois mas não consegui chegar ao fim.
O que eu acho curioso é que antigamente o escritor escrevia e viam-se as emendas nas provas, via-se a evolução que o texto teve. Hoje com os computadores já não se sabe porque motivo o escritor substitui uma palavra por outra».
(texto enviado pelo entrevistador, Salvador Santos)